Vertigem no fim da tarde paulistana

Posted on 13/03/2020

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Cruzeiro do SulPor Cleyton Boson

Sexta-feira, fim de tarde, a concentração de pessoas era intensa na saída da rodoviária do Tietê. Muita gente apertada nos pontos de ônibus ou caminhando em direção à Santana. A Avenida Cruzeiro do Sul soava num zás contínuo de automóveis voltando do trabalho. Na faixa de pedestres, parei apressado (só agora me dei conta de que a vida urbana é capaz desse paradoxo: uma pessoa parar apressada) esperando a boa vontade do sinal vermelho para conseguir atravessar a rua.

Andar a pé em São Paulo pode ser um martírio, a cidade pertence aos carros. Para eles, todo o cálculo da engenharia de trânsito. Uma chuva fina estimulou a multidão a acelerar as passadas, aumentando o calor e a pressa também. 18 horas e 30 minutos, cheguei até a metade do trajeto e agora espero um novo sinal vermelho que interdite a rua. A meio caminho se apresentou um toyota prata. Medi a largura da avenida e a velocidade do carro e desisti de atravessar. As alças das sacolas me doíam nos dedos, escorei as compras no chão para descansar os braços e aproveitei para esfregar o rosto nas mangas da camisa, secando os olhos que já ardiam com a intensificação da chuva. Voltei o olhar para o semáforo: amarelo! Um homem resolveu se arriscar a atravessar a rua antes da chegada do automóvel prata. Seu rosto torcido (em parte pela chuva, em parte pelo álcool) se afundava num casaco jeans em frangalhos e os pés sujos se acomodavam numa sandália de borracha preta. Ele mancava, então caminhava de um jeito mal desenhado. A chuva se acirrou, agora em pingos grossos e intensos. O homem parou, talvez tentando enxergar o trajeto que precisaria seguir e a distância a ser vencida. O toyota o arremessou contra o meio fio do outro lado da rua, mas ainda perto o suficiente para eu lhe ver os olhos pasmos, assombrados, tentando entender as razões que lhe tinham arrancado a vida.

Há dias que venho sonhando, todas as noites, com esse incidente. Por vezes, no sonho, me vejo no lugar do mendigo e, do outro lado da rua, percebo meus olhos a evitar a visão de minha tragédia. As pessoas continuam a atravessar a rua, os carros continuam passando e meus pedaços ali, esquecidos, à espera do caminhão de lixo que chega na madrugada. Não sei se as pessoas fingem minha inexistência ou se realmente não existo. Sempre acordo atordoado depois de cada sonho terrível desses, o suor pingando das pernas e das axilas e um tremer de queixo incontrolável. Invariavelmente me levanto e tomo um copo de leite morno na busca de resgatar o sono perdido. Perdido não! Afugentado pelo medo de que, ao dormir, novamente eu seja transportado para aquela tarde chuvosa em que eu vi um homem ser atropelado e não fiz nada porque estava atrasado e iria perder meu ônibus e porque já não havia nada a ser feito.

Ser urbano é ser de pedra, misturar-se ao concreto que anima a cidade grande. “São Paulo é uma cidade para profissionais!” Disse-me, certa vez, uma pretensa socialite paulistana nascida em Leme. Creio que ela era amadora, pois morreu ao bater o carro contra um caminhão em uma rodovia. Saiu na coluna social uma nota sobre a tragédia, ela havia saído de uma balada onde bebera algumas doses de vodca e alguns outros barbitúricos. Eu decididamente sou amador, não consigo desenvolver o temperamento blasé característico do habitante da metrópole: imune às pessoas que dormem na rua, aos assaltos, aos avanços de sinal vermelho, ao lixo que navega nos rios e nas ruas em dias de enchente, aos vendedores ambulantes, aos pedintes de 4 a 94 anos, ao homem que mija na rua, à mulher que desmaia no trem, enfim, a tudo que diz respeito ao outro.

Não parece, mas sou bicho urbano: nasci, cresci e vivo numa grande cidade. Adoro andar desapercebido no meio da multidão. Só que, de uns tempos para cá, tenho sentido vontade de conhecer o outro que atravessa comigo as avenidas perigosas, que se espreme no trem ao meu lado, que me acena (ou me ignora) em cada esquina.

Posted in: Cultura, Política